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Exposição | 2

10 de Setembro a 15 de Outubro de 2021

Vista da Exposição. Fotografia: Photodocumenta



EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL:

Beatriz Coelho


TEXTO:

Heron do Prado Nogueira



Eu sou dois seres.

O primeiro é fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral:

É fruto de uma natureza que pensa por imagens,

Como diria Paul Valéry.

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu

e vaidades.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades

e frases.

E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros


“Dois pesos, duas medidas”, diz o ditado popular. Numa perspectiva dualista, a natureza do mundo é composta por duas forças que se opõem e completam. No segundo círculo do inferno de Dante encontra-se o Vale dos Ventos, onde padecem os que pecaram pela luxúria. É a partir da existência de duas coisas que se estabelece o múltiplo, em contraposto ao Uno, em Parmênides. As tantas relações possíveis de se traçar a partir do número dois e seus significados culturais se assemelham às outras tantas interpretações possíveis das telas aqui presentes: são imensas e podem nos fazer refletir, mas pouco nos dizem sobre a natureza dos trabalhos que aqui se encontram.


Ao adentrar o espaço expositivo é possível sentir um certo peso no ambiente, o peso das pinturas que estão na parede se estende para o ar, cria uma atmosfera densa, carregada. É evidente que estas telas têm peso. Não se passam por outra coisa, são cruas e duras, feitas de tinta. Nas pinturas de “2” tudo contém outra coisa, que contém outra, e mais outra, assim sucessivamente até chegarmos a um núcleo: de tinta. As formas e cores que abraçam umas às outras parecem estar a apontar, a evidenciar o quanto suas partes são feitas de tinta, de pigmento e aglutinante. Notamos com facilidade a espessura (ou a falta dela), como foi aplicada, suas transparências e opacidades. Se observarmos o trabalho Tabuleiro #22 (2021), composto por uma coisa contida noutra em sequência, é possível termos uma visão clara de que cada área nas pinturas de Beatriz não é por si só, mas faz parte. Essa pintura é uma boneca russa, que se abre através de contentores que fecham o olhar, evidenciando o quanto todas as outras também são. Através destes núcleos de cor, dos rastros deixados pela tinta ao ser lavada e do direcionamento do olhar dado por estas encapsulações, somos constantemente lembrados que estas pinturas são pedaços de pano e tinta, aplicada por mãos indubitavelmente humanas.


Os trabalhos nesta exposição são crípticos. Não se entregam de primeira por mais simples que pareçam. É preciso olhar e olhar de novo, pois se transformam. É verdade que grande parte das pinturas têm mesmo este potencial, mas nestas pinturas existe uma maximização desse aspecto, uma plasticidade flutuante e quiçá — mesmo em pinturas aparentemente tão estáticas — frenética. Os espaços entre as grandes zonas de matéria são particularmente responsáveis por este efeito, e também por isso de extrema importância. Cores súbitas aparecem nestes vãos, pequenas sugestões de algo que foi, ou poderia ser parte da obra. A série de pequenas pinturas intituladas In Between parece nos apontar o papel crucial que os intervalos possuem, afinal, as relações não podem se dar apenas por duas coisas, dois elementos, duas cores, esta relação só se estabelece a partir de tudo que existe entre estes elementos. Como Zenão ao ditar o paradoxo de Aquiles e da Tartaruga, no qual a questão não está em nenhum dos corredores, mas na distância entre eles, Beatriz nos chama aqui a atenção para algo que dita a relação dos elementos da pintura: seus intervalos.


Assim como na música, que tem a melodia moldada pelos intervalos entre as notas, na pintura os espaços entre os elementos, os embates, também moldam as formas e as definem. Nestas bordas, nesses entremeios e até mesmo nas próprias formas vê-se a importância do vazio, do silêncio. Vejamos uma pintura como Sem Título (2021): a grande massa creme está dividida em duas por uma discreta, porém presente linha. Em seu redor duplas de cores lutam para tentar definir qual abraça a outra, e no fim desta batalha: um vazio. Uma ausência que, apesar de não ser feita de linho cru, muito se aproxima disto. A pintura acaba — contida pela tela — mas este vazio poderia se estender, assim como uma nota musical dada por uma guitarra poderia se estender não fosse a fricção do ar. O ar, que permite que o som se propague, é o mesmo que o faz cessar. Da mesma forma, o espaço, que permite que a pintura se concretize, também dita seu fim. Esta pintura, assim como Tabuleiro #22 (2021), fala muito sobre a exposição como um todo: os limites da grade que impedem a pintura de se expandir eternamente são apenas um acidente, o vazio que os precede não.


No livro O que ele me disse de Joachim Gasquet, somos levados por reconstruções de diálogos entre o poeta e o conhecido pintor Paul Cézanne. Em um de seus momentos de reflexão, Cézanne diz à Gasquet: “Repare que a história do mundo data do dia em que dois átomos se encontraram, em que dois turbilhões, duas danças químicas se combinaram”. Esta constatação do pintor francês teria talvez mais credibilidade se dita por um cientista, mas foi dita por um pintor, e como pintora, Beatriz ao nomear esta exposição “2” evoca pensamentos que ressonam com este. Esta é uma exposição concisa e direta (até bruta?), que através da abstração fala tantas línguas quanto o próprio símbolo que a nomeia.



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